Sobre caçadores e Deus (28/10)

Talvez já tenha chegado a era que devemos ficar abarrotados dos caçadores de afeto. Principalmente aqueles que invisivelmente esbarram na sua própria necessidade de mostrar-se abundante dele. Propagando-se discretamente ou forçosamente, salpicam imperativos naqueles que orgulhosamente deveriam ser considerados "queridos" e não preenchedores de necessidades individuais.

Ser carente é uma natureza óbvia, psicologicamente falando. Todos nós somos. A problematização da questão é em termos de auto-controle. Uns mostram que são, outros não. E aí continuamos achando que uns são e outros não, porque é sempre a aparência que dita os juízos mesmo. E talvez por causa disso que a relação direta entre carência e humanidade esteja ainda distante de ser considerada um juízo analítico, e cá estou eu argumentando que poderia até não ser mais um juízo sintético. Mas obviamente, o é.

É apropriado que seguremos as rédeas do cavalo em que estamos montando, não deixando que ele cavalgue apenas atrás de nossas necessidades imediatas ou pueris. A construção do auto-controle é, em parte, o que distingue alguém extremamente maduro de alguém extremamente débil. E uma hora temos que parar de nos preocupar com sermos completados com pessoas, arte, funcionalidade, e passarmos a exercitar nossa suficiência em si. E, em seguida, cuidar pra que não fiquemos muito niilistas depois.

A verdade é que a concepção de um Deus onisciente, onipotente e onipresente foi elaborada pra resumir que o conceito desta Entidade é que ela é independente de tudo e de todos. E apesar de, em última instância, ser um objetivo utópico para reles mortais, chegar mais perto dessa situação é se tornar mais Deus. O convite é esse. Deus é de quem chegar primeiro.


Lucas.

Liberdade enclausurada (25/10)


Eu, confesso, fui rude em dizer que você estava preso
Quando, na verdade, está claramente livre.
Mas, sendo sincero, mesmo eu estando preso
Estou livre na minha prisão
E você, orgulhosamente livre, está preso na sua escolha.
Desde o começo, eu admiti a ideia de você estar livre.
Per si, eu estou preso.
Mas estou aberto na possibilidade de eu estar livre.
Você, livre, mas preso na sua certeza, não admite a possibilidade de estar preso.
Errado na minha opinião sobre a sua liberdade, eu estava certo.
E você, certo sobre sua liberdade, estava errado em atitude.
Tranquilo, eu estou aqui, preso.
E você, angustiado e livre, não está.

Lucas.

(Agradecimentos especiais para Millôr)

Roda Gigante (12/10)


Dai que Nietzsche falava sobre um tal de Eterno Retorno que é meio frustrante, meio reconfortante. Que fica no meio termo entre o copo metade cheio e o metade vazio. E entre tantos meios e metades que são esses, é que parece que criamos a nossa identidade. Parece que moramos no tempo que se repete indefinidamente, quando quer:

Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência”. (A Gaia Ciência)

Ora, meio que faz sentido. Não somos cada vez mais afeto e cada vez menos afecto com o passar do tempo? Não criamos raízes tão profundas que a direção do nosso crescimento se torna linear e previsível? Ao contrário da criança que aprendeu a falar agora, não somos mais um mundo de possibilidades. Somos um mundo de escolhas forçadas e, ao mesmo tempo, consentidas.

O bem e o mal, o prazer e o sofrimento, são instâncias complementares da realidade. E como a realidade não tem objetivo, pois se tivesse já teria o alcançado, a alternância entre elas é constante. Dado que o tempo é infinito, tudo se repetirá, inúmeras vezes, em “loops” eternos.

Há um certo desconforto confortado nessa ideia. Mas há também a segurança da previsibilidade daquele seu amanhã vindouro. Quanto a mim? Que venha. Quero viver tudo de novo, de maneiras diferentes. Topar e escorregar nos mesmos lugares e rir das mesmas contradições. Parece que, no final das contas, entrar na máquina do tempo não é só uma ilusão.

Lucas.

Rastro indelével (08/10)

Quem escreve, escreve muito. Aproveita metade de um sentimento pra fazer uma poesia inteira. Amiúde, uma poesia de sentimentos passageiros, com prazo de validade, daquela que daqui há dois meses será um não-sei-o-que sobre algo-aí. Mas em cada poeta, em cada prosador, há frases feitas. Frases que a vida o ensinou, regências e léxicos que foram aprendidos através dos sentimentos que duraram e que ficaram. Soluções banais para expressar sentimentos raros. E usadas a todo momento pra mostrar o luto ou a alegria, acabam se tornando essa miscelânea de distinguidos iguais. Uma marca, uma assinatura disfarçada, figurante e protagonista do nosso livro em construção. Todo texto do mesmo autor é, ultimamente, o mesmo texto, reorganizado, ressentido, reamado, reembaralhado. É por isso que quando o fim de meus dias chegarem, embrulharei de herança um único texto, aquele meu último, que de um jeito ou de outro, carregará todos os sentimentos que eu tive na vida. E, até lá, acho que minha poesia está mesmo precisando me demitir como funcionário, os meus textos ficam muito melhor quando estão assim, sem mim.


Lucas.