Da infinitude da perda

A perda não termina em si mesma. Uma vez em contato, ela se espalha, quase que viralmente, por todos os minutos. Toma-lhe no seu bom dia. Deixa-se clara em seus sorrisos, em seu cansaço. Ela finalmente se encontra com você em seu futuro. Faz-lhe acreditar que você já perdeu tudo que você ainda nunca teve. De modo que não há novas pessoas, não há novos amores. Não há novas amizades, novos vizinhos interessantes, nem novos colegas em potencial. Apenas há a perda, que nunca sucedeu, mas que sempre está acontecendo, silenciosa, no seu espírito.

Uma visita da ira celestial

Aqueles que uma vez te amaram
Te amaram uma vez.

Grito sem vocativo

Sob um pano vagabundo, atrás de um véu discreto, podemos encontrar os sentimentos mais incríveis. Sei disso porque já andei por aí fabricando muitos deles, travestindo maravilhas. Maravilhas pessoais, daquelas que não interessam a ninguém ou causam apenas pena. Já tive sentimentos transformados em poemas, em presentes, em indiretas, ora, quem não? Mas essas não são demonstrações, são maquiagens. Meticulosamente organizadas para disfarçarem a beleza natural que as caracteriza. Mas, em certo momento, os poros precisam respirar. Acordar em uma cama confortável e ser simplesmente quem são. Parar de brincar de pique-esconde com a vida.

 

Os sentimentos permanecem em segredo, como se fossem, sozinhos, melhor compreendidos. Hoje ainda não é o dia. Não é o minuto. Provavelmente ainda nem é o ano. A verdade é que não tenho perspectiva alguma de quando poderei entregar no devido endereço uma carta a esse respeito. Uma carta que seja mais limpa que minhas trapaças e minhas negações. Por enquanto, ainda é secreto. Um segredo sem nenhum cúmplice. Mas um segredo que, por um breve minuto, pôde gritar de sua cela. Um berro sem nomes, com medo de ser atendido.

Ciúme

As raízes de qualquer sentimento não partem apenas do indivíduo, mas também da sua construção no espaço social e histórico. Uma análise do sentimento de posse para com as pessoas deve respeitar esse processo para ir além do novelesco.

Falar de ciúme é falar de propriedade privada. O surgimento da propriedade remonta à época que ainda estava surgindo a divisão natural do trabalho, com homens caçando e mulheres cuidando de crianças que esses homens resolviam fazer. Em um primeiro momento, não havia qualquer hierarquia de gênero. O homem foi então desenvolvendo ferramentas e tecnologias como a agricultura, que possibilitaram a produção de excedentes. Como jogar fora bens necessários à sobrevivência nunca fez muito sentido do ponto de vista instintivo, transformou-se em um processo cumulativo, e posteriormente, de troca. Essa troca já era a forma nascente do comércio, do lucro e da hierarquia social.

O excedente, que se tornou o berço do mercado, permitiu ainda o nascimento da herança. Afinal, não vamos sair distribuindo por aí o nosso trabalho, depois de nossa morte, correto? Correto. E são os interesses de herança que trazem a formação do casamento monogâmico, dando fim ao matrimônio de grupos.

O ponto de vista do surgimento da monogamia a partir da acumulação de bens suscita uma pergunta interessante: o parceiro, dentro desse sistema, é também um bem? Sim. Porém, extremamente humanizado. A humanização do bem é o que mascara o caráter de posse da relação afetiva. Fazemos isso com namorados(as), cachorros e passarinhos. Tanto que, involuntariamente, aplicamos os queridos pronomes possessivos: meu, minha.

Para existir a construção da ideia de posse, o objeto ou pessoa deve ter um valor útil ou emocional. Ele deve sanar um problema ou uma situação emocional e sexual problemática. A pessoa parceira monogâmica dá vazão a sentimentos de carência e solidão peculiares, até que se torna um objeto para saciar os mesmos. Assim que fica estabelecida sua função, o ciúme entra em cena.

Só há um modo de não abrir mão de sua matéria prima sentimental: diversificar os fornecedores. Os interesses emocionais de cada um podem mudar de público, fechar para balanço, etc. É o velho ditado de não guardar seu tesouro em um único cofre. A pessoa que acredita que o capital emocional investido nela diz respeito a ela e não ao outro, trata o afeto como um resultado das boas transações por si estabelecidas e do investimento pluralizado. O mercado é de risco, o emotivo é flutuante e nenhum negócio é infinitamente próspero.

Vejo vocês na Bolsa e desejo bons investimentos. ;)

Corrigindo Ditos Populares III

Poema para um dia de memória


Quando nasce uma criança da sociedade estabelecida
se perde de vista a perspectiva do primeiro razante
se relega ao jovem a categoria de amante
de uma cidade monogâmica já encardida
Se imagina vilão de uma história
escrita pela memória dos amores de antes
que na sua vida fazem mora
e abandonam por ensejo de qualquer momento marcante

Hora firme, hora trepidante
o sentimento infante pousa no pensamento
de que o futuro breve abrandará o sofrimento
que outrora era considerado gigante

Mas a resposta chega em epifania
de que toda cavalaria segue adiante
batalha de dia, foge na noite
e com o açoite, causa o levante.

Nem todos.